Mensagem do Grupo de Discussão Ciência Cognitiva

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Ciência Cognitiva - http://sites.uol.com.br/luzardo

-----Original Message-----
    From: Bruno (Solar) <brunoc@solar.com.br>
   
>     A teoria da complexidade parte do princípio que o ruído - que a cibernética,
> as telecomunicações e praticamente todas as ciências tentam eliminar - é, na
> verdade, generativo, possibilitando a formação de elementos de ordem a
> partir do caos. Esse modelo pode ser facilmente identificado como um
> análogo do processo cognitivo humano: nossos sentidos são bombardeados
> por informações constantemente, produzindo um ruído natural que serve
> como regulador das atividades - tanto que se um ser humano for
> colocado em isolamento total do meio ambiente, enlouquece.
   

    Este é um comentário importante, embora pareça requerer algumas
ressalvas. O ruído é super-importante, mas não é ele que é gerativo, ele
é apenas auxiliar no processo gerativo. Aquilo que transforma o caos em
ordem pode ser visto como um processo determinístico, com regras bem
definidas. O problema é que esse processo é insuficiente para lidar com a
complexidade da tarefa (obter regularidades de sinais sensórios vagos e
ruidosos). Então, esses mecanismos também usam o ruído (interno), como
auxiliar na tarefa de descoberta de correlações mais profundas. Esse
processo está somente agora (última década) sendo estudado em detalhes
e um dos temas que aborda chama-se 'Stochastic Resonance'.

O que se está vendo é que ruído é realmente necessário não só
para tornar o sistema mais eficiente, mas também para fazê-lo descobrir
coisas que um processo puramente determinístico não descobriria sozinho.
Este assunto está bastante ligado à criatividade.

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Sergio Navega
http://www.intelliwise.com/snavega


    Ciência Cognitiva - http://sites.uol.com.br/luzardo
André Luzardo:
>     Olá a todos!
>
>     Tenho uma questão teórica que ando me debatendo desde que tomei
> seu conhecimento. Como todos devem saber a Ciência Cognitiva é hoje em
> dia liderada pela abordagem computacional-representacional da mente. Apesar
> das críticas (muitas até discutidas aqui) essa abordagem ainda impera. No
> entanto, uma das críticas me era desconhecida até então e gostaria de saber
> a opinião de vcs a respeito. Trata-se da crítica da abordagem dos sistemas
> dinâmicos. Essa abordagem trata de problemas físicos e uma das suas mais
> bem conhecidas aplicações é a meteorologia. Em um sistema dinâmico temos
> um conjunto de equações não-lineares que descrevem o comportamento do
> sistema em um determinado tempo. O caso é que como essas equações são
> não-lineares, a mudança pequena em uma das variáveis pode provocar uma
> mudança imensa na situação final. Exatamente como o famoso caso da batida
> de asas de uma borboleta na amazônia que pode provocar um furacão na
> califórnia. Essa situação hipotética simplesmente evidencia a diferença que
> uma pequena variação na velocidade do ar no Brasil pode provocar na
> velocidade do vento em outras regiões. Bom, a idéia interessante seria
> considerar a mente um sistema dinâmico e tentar escrever as equações
> necessárias. Até aqui, trata-se da crítica em si, e poderíamos parar para
> analisar o que isso significa. Mas apesar das dúvidas iniciais, outras questões
> começam a aparecer quando vc considera mais a fundo as implicações disso.
   

Êta questão importante!
Há um novo ramo da ciência cognitiva que está atrás exatamente dessas
interpretações. Posso citar os trabalhos de Kelso e Thelen e Smith (dou
mais detalhes se interessar).

> Primeiro lugar, toda tentativa de matematizar a mente humana ainda está
> engatinhando. Conheço um livro (Mathematical Psychology, do Tverski
> entre outros) que praticamente aborda tudo que se trabalha quanto a
> psicologia matemática. E TUDO resume-se a umas 200 páginas! O maior
> dos problemas talvez seja a falta de definição das variáveis relevantes. Na
> física temos a massa, a velocidade, a aceleração e a força por exemplo.
> Quais são os correlatos na psicologia? Não conheço sequer um. Trabalha-se
> com tempo de reação, probabilística na tomada de decisões e questões
> referentes a similaridade. Mas onde estão as variáveis de fato? Podemos
> pensar no neurônio e nas sinapses e isso me conduz a segunda questão:
> será que as mudanças na estrutura celular são relevantes, de forma
> matemática, na mudança do comportamento mental? E se forem será
> que são computáveis?   

São relevantes, podem (já são) interpretadas matematicamente, são
computáveis e afetam o comportamento mental. Já resolvemos o problema?

Não. Acontece que o sistema todo é muito complexo e é aí que surge
a similaridade com, por exemplo, os sistemas meteorológicos. Conhecemos
tudo sobre mecânica dos fluidos, a física dos gases, comportamento
de massas de ar, etc. Isto, entretanto, não ajuda a aumentar nosso
limite atual de predição de 2 ou 3 dias. Muito mais do que isso não
dá, porque o problema é computacionalmente intratável. Mas a coisa
é mais profunda ainda.

Sistemas caóticos tem dois aspectos principais: suas regras de
funcionamento são não-lineares (a maioria da natureza é regida por
leis não-lineares) e o estabelecimento de condições iniciais é
impreciso (isto está ligado, obviamente, ao princípio da incerteza
de Heisenberg). Todos esses sistemas são extremamente dependentes
das condições iniciais.

Então, mesmo que conheçamos as "regras do jogo", dada a incerteza
de como ele começa e a complexidade das "interações entre os
jogadores", não dá para prever o que vai acontecer.

Agora, isto tudo é apenas o aspecto *interno*. Junte-se a isto o
fato de que o cérebro (organismo) está imerso em um meio também
caótico e incerto. A relação desses dois mecanismos multiplica a
complexidade, a ponto de, em minha opinião, desafiar qualquer
tentativa de modelagem matemática (ao menos que difira das que
já fazemos com nossa atmosfera).

Para resumir, é mais fácil predizer qual será o clima daqui a
uma semana do que predizer como o cérebro de um sujeito vai
estar daqui a algumas horas. Isto pode ser uma primeira garantia
da individualidade humana.

> Bom, a questão para mim é nova. Imagino, numa situação ideal é claro,
> um futuro onde poderemos calcular, dado o estado de determinada
> partícula nos neurônios, o comportamento de um grupo de células
> inteiro, e depois o efeito no cérebro, e depois o efeito no comportamento.
> Será isso possível? 
   
Só se alguém descobrir, no futuro, que Heisenberg estava errado e que
este mundo em que vivemos é, na realidade, predizível por "certas equações".
Em minha opinião, isto não acontecerá, pois acabamos de ser informados que
nossa visão clássica e deterministica do mundo é comparável à visão que
os poetas tinham da lua antes do pouso por Armstrong/Aldrin em 1969.

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Sergio Navega
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> From: fialho <fialho@eps.ufsc.br>
>
> A última palavra em Cognição pode ser encontrada no livro do PINKERTON
> "Como a Mente Funciona". Essa é a abordagem mais aceita na Academia.

Prof. Fialho, permita-me discordar. Posso aceitar que Pinker represente
uma importante abordagem e posso até aceitar que ele represente o
pensamento da maioria dos cientistas cognitivos da atualidade, mas
ele não é a última palavra. Eu diria que a última palavra está sendo
proferida pelos que estão revendo alguns dos "dogmas recentes" da
CogSci, em especial a questão do "conhecimento nativo" em domínios
específicos, como linguagem.

Isto é obra dos conexionistas (Elman, Bates, McClelland, Seidenberg,
etc) que fazem uma análise mais neurocientífica do problema e não
encontram evidências suficientes para suportar o pensamento nativista
de Chomsky e Fodor. A argumentação deles (dos anti-nativistas) faz mais
sentido para mim do que a de Chomsky/Fodor/Pinker. Mas sei que isto é
um "can of worms" que uma vez aberto é difícil de fechar.

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Sergio Navega
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From: fialho <fialho@eps.ufsc.br>
> >Sergio wrote:
> >Isto é obra dos conexionistas (Elman, Bates, McClelland, Seidenberg,
> >etc) que fazem uma análise mais neurocientífica do problema e não
> >encontram evidências suficientes para suportar o pensamento nativista
> >de Chomsky e Fodor. A argumentação deles (dos anti-nativistas) faz mais
> >sentido para mim do que a de Chomsky/Fodor/Pinker. Mas sei que isto é
> >um "can of worms" que uma vez aberto é difícil de fechar.
> >
>
> Nossa escola aqui na UFSC é a francesa. Discordamos de Fodor. Richard,
> psicólogo da Paris VIII, em Les Activités Mentales vai dizer que:
>
> "A existência de tratamentos modulares me parece  indiscutível. Um primeiro
> problema é saber a que níveis eles  se  si tuam dentro do funcionamento
> cognitivo. É um ato  abusivo  colocar, como o faz Fodor, a compreensão da
> linguagem entre os  tratamentos modulares. A nosso entender, os
> tratamentos  modulares que têm sido colocados em evidência referem-se   aos
> tratamentos ascendentes, que se situam em um nível infra-semântico (em
> todo caso, infra-predicado) e infra-decisional. Eles têm relação  com as
> operações elementares, cujos produtos estão muito  longe  dos resultados da
> atividade cognitiva que se entende  pelo  nome  de compreensão ou de
> resolução de problemas".
>
> "A tese fodoriana segundo a qual os  processos  centrais são inacessíveis à
> investigação cientifica tem como base a idéia de que só são cientificamente
> investigáveis os processos  isoláveis pelos métodos experimentais. Como
> veremos no decorrer desta obra, o estudo das atividades mentais supõe a
> utilização  simultânea de métodos experimentais comparativos,  de
> observação  em situação controlada e de métodos de simulação".

Confesso que não conheço muito da corrente francesa. Mas minha
primeira impressão (baseada nos "quotes" que citou) é boa :-).

O que acho bastante aproveitável em Fodor é a idéia de que há
estruturas modulares, funcionalmente independentes uma das outras.
As idéias de Fodor que não acho interessantes são as de que
esses módulos são totalmente inatos (especificados geneticamente)
e a noção de que existe um "coordenador central". O que se vê
hoje em dia, ao se analisar as evidências neurocientíficas, é
que ambos os pontos não são sustentáveis. Muito do cérebro é
desenvolvido "no meio do caminho" (self-organization) e durante
o seu funcionamento não parece haver coordenação central de
nenhuma espécie, mas sim um "acordo de cavalheiros" entre os
diversos "módulos". Quando um ou mais desses acordos é rompido
(principalmente no lobo frontal) surgem algumas enfermidades
mentais como esquizofrenia, paranóia, etc.

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Sergio Navega
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From: Marcus Maia <marcusmaia@alternex.com.br>
>
>Fialho wrote:
>Eu diria que a última palavra está sendo
>>proferida pelos que estão revendo alguns dos "dogmas recentes" da
>>CogSci, em especial a questão do "conhecimento nativo" em domínios
>>específicos, como linguagem.
>
>Prezado Fialho,
>Por favor, gostaria de saber quem está revendo a tese do inatismo. Segundo
>Chomsky, a tese do inatismo é a resposta ao problema lógico da aquisição:
>Como podemos saber tanto se temos tão poucas evidências. Ou seja, trata-e do
>problema da pobreza de estímulos. Embora o próprio Chomsky (98) em sua nota
>7, admita que o problema seja revisto à luz de teorias recentes sobre a
>modulação do parser a partir de línguas específicas, gostaria de saber a que
>revisões especificamente vc se refere.
>Marcus Maia
>Professor Adjunto de Lingüística
>UFRJ
>

Prof. Marcus,
A frase acima não foi do Prof. Fialho, mas minha durante diálogo com
ele.

Tenho grande admiração pelo trabalho de Chomsky, especialmente porque
sua introdução foi oportuna, em um momento que o Behaviorismo
Skinneriano estava propondo muita coisa "difícil de engolir".

Mas essa admiração não se mantém quando o assunto é origem da
linguagem. Deste os tempos do debate Chomsky/Piaget, a questão tem
sido tratada com certa emocionalidade por cada uma das partes.

Meu ponto aqui é este: não conheço uma única evidência que seja
conclusiva acerca da existência de órgãos de linguagem
geneticamente determinados em seres humanos.

Todas as evidências levantadas tem formas alternativas (e mais
razoáveis) de interpretação e que nos permitem concluir pela
inexistência de mecanismos específicos associados à linguagem.

Veja bem, não estou dizendo que nosso cérebro não tem nada de
especial nesse aspecto, só digo que o que ele tem de especial
(posso elaborar uma lista) também afeta outras áreas cognitivas,
não se limitando a linguagem.

A questão mais fundamental é, portanto, a origem específica em
relação ao domínio (domain specificity) da linguagem. É
principalmente este o ponto que vejo como insustentável.

Mas antes de comentar sobre evidências (para não tornar esta
mensagem muito longa) proponho revermos a idéia fundamental que
parece estar associada a tudo isto: "poverty of stimulus".

Posso até aceitar que os estímulos gramaticais a que uma
criança está sujeita sejam pobres. As crianças são muitas vezes
apresentadas apenas a exemplos "positivos", sem referência a
exemplos negativos. Há alguns estudos que afirmam que sem
estímulos negativos, fica difícil compreender a linguagem.
Então, conclui-se, deve haver estruturas inatas que auxiliem
na tarefa. É esta a conclusão que quero combater.

O primeiro ponto é relativo à pobreza de estímulos: gramática
é apenas uma pequena parte do problema. Sintaxe não é tudo,
semântica é onde a coisa toda tem que terminar. Talvez o
maior pecado das análises Chomskianas seja a limitação em
estruturas sintáticas sem referência ao que é fornecido por
estruturas semânticas. Ora, isto é analisar uma pequena parte
do problema, já que sintaxe sozinha não faz muito.

Visto sobre esse ângulo, o que temos não é pobreza de estímulos,
muito pelo contrário, temos excesso de estímulos. A criança está
rodeada de informação não linguística, informação essa que a
pré-condiciona a perceber certas regularidades sintáticas. Antes
de uma criança captar o sentido do verbo 'dar', por exemplo,
ela já conhece muito das futuras exigências estruturais
(como dar "o que", "para quem").

Mas tenho certeza de que este é o típico assunto que vai dar
"pano para manga". Vamos lá!

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Sergio Navega
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From: Marcus Maia <marcusmaia@alternex.com.br>
>
>Olá, Sérgio,
>É verdade que tudo termina na semântica, mas até ela depende de estrutura. E
>as relações estruturais que tem sido identificadas universalmente nas
>línguas humanas são de um tipo totalmente idiossincrático, isto é, não há
>nada em outros domínios que sequer se assemelhe a elas. Tome por exemplo a
>relação conhecida como c-comando, basicamente uma relação estrutural entre
>um nó e partes componentes de outro nó irmão. Pois bem, esta configuração
>explica relações anafóricas, polaridade negativa e várias outras construções
>nas línguas.

Concordo que essas estruturas possam ter poder explanatório, mas a
questão é que elas não são suficientes para suportar a idéia de que
há mecanismos específicos dedicados a elas.

Elas só suportam a idéia de que, após um período de aprendizado, as
crianças e adultos são capazes de capturar certas estruturas regulares.
Essas estruturas, mesmo sendo incomuns, nada afirmam na questão
da *exclusividade* de mecanismos para processá-las. Há teorias que
relacionam idéias semânticas de linguagem com as nossas habilidades
de manipular e arremessar objetos.

>Por outro lado, ao ouvir ou ler uma frase, você tem de
>analisá-la, é um processo reflexo, não um processo de reflexão. Aos 3 anos
>uma criança domina todas essas estruturas, podendo parseá-las
>competentemente, tenha sido ela criada em uma família rica ou em uma família
>pobre, no sul ou no norte.

Há dezenas de outras habilidades cognitivas que tem essa mesma
universalidade. Como exemplo, reconhecimento visual de objetos
(mesmo parcialmente oclusos) é algo que todas as pessoas tem em
comum. Entretanto, considero que a complexidade computacional de
reconhecer objetos seja, se não superior, pelo menos equivalente
à do entendimento de linguagem (pergunte a qualquer pesquisador
de visão computacional). Todos temos essas habilidades
perceptuais bem desenvolvidas e há diversas evidências
neurocientíficas apontando para uma origem não-nativa
(experiencial) dessas habilidades.

Em relação ao processo reflexivo, é preciso considerar dois níveis
no qual essa expressão se aplica. Um é o processo nativo,
geneticamente determinado, como aquele de piscarmos os olhos
quando algo é jogado subitamente em nossa direção. Isto é o
resultado de circuitos neurais específicos, que foram formados
por causa de pressões seletivas (evolucionistas).

A outra forma de encarar processo reflexo é aquele que é
aprendido, inicialmente conscientemente e depois fazendo parte de
nossos "atos reflexos". Um exemplo típico é você estar no trânsito
dirigindo e subitamente o carro da frente acender sua luz de
freio. Automatica (e impensadamente) nós faremos nossos pés
pressionarem nosso freio, em muitos casos surpreendendo-nos
pela agilidade (quem ainda não teve um susto desses?). Este
reflexo foi aprendido e "consolidado" através da repetição.
Tanto que podemos executar tarefas como essa mesmo sem ter
noção consciente de sua execução (podemos dirigir um carro
conversando com a pessoa do lado).

Proponho que a linguagem faz parte de um processo reflexo
análogo à segunda forma de definirmos esse termo, com apenas
um agregado: esse processo é gerativo e criativo (é aqui
que deixo Skinner para trás).

>E durante esse tempo só ouviu fragmentos, frases
>truncadas. O cérebro/mente  faz com a linguagem o que faz com a visão quando
>vemos um filme: completa, estrutura, organiza. E da onde vem essa
>competência? De dentro. De um domínio modular que atua a despeito de outros
>domínios.

Certamente é um domínio modular e certamente há habilidades de
estruturação e organização, muitas vezes automática.

Mas a questão é: esse domínio modular já está presente assim que
o bebê nasce? Em suma, já há uma área de Broca e uma de Wernicke
assim que o bebê vem ao mundo? É esta a questão que a neurociência
vem respondendo com não, essas áreas não estão presentes e são,
na verdade, desenvolvidas através da interação do organismo com
seu meio ambiente.

Há um fato neurocientífico que costumo usar para mostrar porque
isso é razoável. Há casos de disturbios epilépticos severos que
não conseguem ser controlados por medicação. Nesses casos extremos,
apela-se para uma solução também extrema: a chamada hemisferectomia,
remoção de metade do cérebro.

É uma cirurgia radical mas que garante uma sobrevida ao paciente,
que nem isto teria caso nada fosse feito. Quando um adulto é
submetido a este tipo de intervenção e quando o hemisfério
extraído é o esquerdo, há uma virtual perda das funções de
linguagem. Nos anos seguintes, essa pessoa pode, através de
treinamento intensivo, recuperar um pouco da linguagem básica.
Mas sempre muito pouco.

Entretanto, quando esta intervenção é necessária em crianças
jovens, esta remoção não prejudica muito o futuro aprendizado
de linguagem (veja [1] e [2]). Há situações em que as funções
de linguagem ficam praticamente normais. Porque esta diferença?

O que é proposto é que o período de maior plasticidade neural
vai dos 0 até os 5-6 anos de idade e é nesta fase que as
crianças tem seu maior potencial de aprendizado de linguagem
(segundas linguas são aprendidas melhor se isto é feito
por crianças, e não por adultos).

Nas que foram submetidas à hemisferectomia, o cérebro se
encarregou de se auto-organizar e criar em outras áreas os
módulos necessários ao entendimento fonológico/gramatical e
semântico da linguagem. E isto foi feito por causa do
esforço da criança (e da sociedade ao seu redor) para
integrá-la à comunidade, através da linguagem.


[1] Kolb, Bryan (1995) Brain Plasticity and Behavior. Lawrence
Erlbaum Associates

[2] Springer, Sally P.; Deutsch, Georg (1998) Left Brain, Right
Brain, Perspectives from Cognitive Neuroscience. W. H. Freeman
and Company.

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Sergio Navega.
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From: André Luzardo <luzardo@uol.com.br>
>
>Tudo que você diz a respeito da linguagem humana realmente é muito
>importante, mas ao meu ver todos estes processos vem depois, eles consolidam
>algo que já está pré-programado na cabeça. Como você explicaria os casos de
>crianças encontradas no meio do mato, depois de ficarem perdidas por lá
>durante os primeiros anos de vida e que não conseguiram desenvolver a
>linguagem nunca mais? Todos os casos que já ouvi possuem este elemento,
>entre outros, apesar de esforços combinados de psicólogos e linguistas para
>ensinar-lhes uma lingua. Se a aprendizagem fosse tudo o que bastasse na
>linguagem essas crianças (já adolescentes quando encontradas) deveriam ter
>aprendido uma linguagem, não?
>

Não conheço muitas referências científicas sobre esses casos, mas
se for como você disse, então meus argumentos saem reforçados. Se um
adolescente é encontrado na mata e ao ser introduzido à linguagem não
consegue desenvolvê-la corretamente, isto sugere que não há nada
"nativo" (ou seja uma capacidade específica em todo mundo) que o faça
aprender isto com idade avançada. Em princípio, caso os argumentos
da natividade estivessem corretos, não deveria haver problemas em
aprender linguagem com idade avançada.

O que isto sugeriria (e é o que consigo confirmar por outras evidências)
é que há um período crítico para aprendizado de linguagem (idealmente
indo de 0 a 5 ou seis anos). Coincidentemente (ou não) a plasticidade
sináptica atinge seu pico em 18 meses de idade. Aprender linguagem
fora deste período é muito mais sacrificado, mas não deveria ser se
houvesse um "órgão de linguagem" especificado geneticamente.

>Concordo com você que é necessário que haja aprendizado externo, mas não
>concordo que este seja suficiente. Como você mesmo citou, adultos que sofrem
>perda de massa encefálica na região da linguagem raramente conseguem retomar
>essa habilidade. Já quando isso acontece nas crianças, o desenvolvimento
>pode ser até normal. Essa plasticidade no entanto dura pouco, como vc disse,
>até os 6 anos. Mas outras plasticidades continuam até morrer, como a
>capacidade de aprender outras tarefas e etc.
>

Há dois tipos de plasticidade que vale a pena distinguir. A primeira
está relacionada à reorganização intensa do córtex cerebral e isto
ocorre com todos durante a infância e em certos casos de adultos
(comento sobre isto mais abaixo).

A segunda é a plasticidade menos intensa, associada ao aprendizado
normal. Como exemplo, somos capazes de decorar um novo número
telefônico (que seja importante) e colocá-lo em nossa memória mais
"permanente". Esse tipo de plasticidade provavelmente não decorre
de intensa reorganização de conexões entre neurônios, mas sim através
da "intensificação" (reforço) de conexões sinápticas já existentes.

É isto que parece estar associado ao mecanismo de aprendizagem que,
como é hipótese corrente em neurociência, usa o famoso mecanismo
da LTP (Long-Term Potentiation). É essa, também, a área de pesquisa
que tem ligação com o Hipocampo, aquela pequena estrutura bem
no meio do cérebro que, comprovadamente, intermedia o aprendizado.

Alguém poderia perguntar porque a natureza se daria ao trabalho de
"projetar" um mecanismo de aprendizado duplo, um com reforço de
sinapses já existentes para os aprendizados "simples" e uma
reorganização mais profunda para outros casos. A resposta parece
estar relacionada à complexidade do aprendizado. Isto é uma das
possíveis interpretações da disciplina chamada de COLT (Computational
Learning Theory), que apresenta como é matematicamente complexo o
aprendizado a partir de dados sensórios brutos. Computacionalmente,
este é um problema muito complexo. É só imaginar o que o cérebro
tem que fazer para transformar um feixe de milhões de fibras (nervo
ótico) contendo pulsos à razão de 10 a 100 por segundo (cada um)
indicando uma cena qualquer que o olho esteja captando: é muito
complexo. E no entanto, executamos esse processamento todo em
algumas dezenas de milésimos de segundo.

Por isso, a "abordagem" da natureza foi a de providenciar um
mecanismo que se auto-organizasse (em bebês) em função da
experiência a que são submetidos. Esse mecanismo se "auto-constrói"
conforme vai recebendo impulsos (posso citar em outra mensagem
o efeito da privação de visão em cobaias).

Acredito que em grande parte nossas habilidades de percepção
fonológica sejam fruto de uma auto-organização similar à da visão,
e isto estaria "pavimentando" o terreno para o futuro (para o
bebê) assentamento das estruturas gramaticais e léxicas da
linguagem. Não dá para aprender uma língua sem isto.

Sobre a reorganização intensa em adultos, é fato que quem perde
a visão após a infância sofre nos meses seguintes (em mais
de um sentido!) de uma reorganização do córtex. Como a visão
não mais usa os neurônios do lobo ocipital (aquele acima da
nuca), esses neurônios são "requisitados" para ajudar no
processamento auditivo. O resultado é que, comprovadamente,
cegos (já adaptados à nova situação) tem uma percepção
auditiva superior à das pessoas com visão normal.

Uso esse fato para sugerir que a reorganização do córtex é
"empurrada" por demandas grandes. Na criança, essa demanda é
por "entender" e "ser endendido" pelos adultos: há forte
apelo emocional para a criança usar a linguagem, o próprio
aprendizado é uma espécie de "angústia" que a criança
precisa resolver. No adulto cego, há forte pressão pela
auto-suficiência e isto faria o córtex se "ajeitar" para
obter o máximo de informação do meio ambiente.

Outro resultado interessante é que pessoas nascidas cegas
possuem capacidade perceptual auditiva e tátil maior do que
adultos que se tornaram cegos depois. Isto segue a mesma
linha de crianças que aprendem uma segunda língua quando
comparados a adultos aprendendo uma segunda língua.

A plasticidade, portanto, não é exclusiva das crianças, podendo
ocorrer também em adultos. Só que em crianças essa plasticidade
é muito maior e é exatamente isso que é necessário para que
a linguagem seja "capturada", pois linguagem é um problema
muito complexo (principalmente percepção fonológica).

Por essa (e outras) fico mais tranquilo com a visão de que
linguagem em humanos não tem nada de geneticamente (e especificamente)
determinado. É um processo de aprendizado de uma "invenção"
(gramática/sintaxe) que não é mantida nos gens das pessoas,
mas sim em seu meio ambiente. Linguagem é um fenômeno social,
um típico sistema dinâmico.

Sergio Navega
http://www.intelliwise.com/snavega


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